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Sobre águas turbulentas

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A historiadora Marcia Camargos explica como a revolução laica da Primavera Árabe foi sequestrada por forças religiosas

Doutora em História Social pela USP, Marcia Mascarenhas de Rezende Camargos é especialista na história cultural de São Paulo, com 22 livros publicados. Mais recentemente, tem aprofundado estudos sobre o Oriente Médio e acompanhado de perto as revoluções desencadeadas pela Primavera Árabe. Foto: Arthur Fujii

Doutora em História Social pela USP, Marcia Mascarenhas de Rezende Camargos é especialista na história cultural de São Paulo, com 22 livros publicados. Mais recentemente, tem aprofundado estudos sobre o Oriente Médio e acompanhado de perto as revoluções desencadeadas pela Primavera Árabe. Foto: Arthur Fujii

Cabe ao intelectual criar pontes, acredita a historiadora Marcia Camargos. Para ela, entre os elos mais frágeis no mundo está aquele que liga “Ocidente” e “Oriente”, denominações criadas em espírito de contraposição e enfrentamento. Marcia, que chegou a acampar na Praça Tahir, no Cairo, e continuamente visita os países palco das revoltas desencadeadas na Primavera Árabe, explica como a revolução laica foi sequestrada por forças religiosas, surpreendendo quem esperava uma transformação à imagem e semelhança das democracias ocidentais.

Sem ter devidamente calculado o elemento religioso, que torna ainda mais imprevisível o desfecho na região, o Ocidente se vê em um impasse. Mas a frustração com o desenrolar da Primavera, como diz Marcia, é algo que deve falar mais alto ao Ocidente, ao dar-se conta de que a democracia talvez não seja um conceito universal, mas eurocêntrico.

Nesta entrevista concedida em meados de março, a historiadora postula que não se devem desprezar os resultados importantíssimos da Primavera Árabe, só porque tecnicamente se encerrou. Assim como na natureza, a primavera cumpre um ciclo, para então outros se abrirem.

A eclosão da revolta na Síria completa dois anos amanhã (15 de março), e já se transformou há muito tempo em guerra civil; o Egito vive novos protestos; a região está mergulhando em um caos econômico, social, político. Na Tunísia, mais um desempregado se imolou. Podemos dizer que a Primavera Árabe, em vez abrir espaço para o secularismo no Oriente, acabou por levar a um fortalecimento do radicalismo religioso – que é tudo o que as potências ocidentais não queriam?

Essa guinada para o radicalismo islâmico causou uma certa surpresa no mundo ocidental, porque se acreditava que esses países iriam viver uma democracia laica e igualitária. Acreditou-se que as mulheres que estiveram na vanguarda da Primavera Árabe estariam ocupando cargos no novo sistema de governo que viria. Havia essa expectativa pelo fato de jovens terem espalhado de forma tão eficaz essas revoluções usando as redes sociais. Quando Khaled Said, um jovem de Alexandria, foi preso e torturado, os seus amigos, em vez de ficar quietos, substituíram suas próprias fotos no Facebook pela foto dele e isso se espalhou a ponto de levar à ocupação na Praça Tahir. São jovens laicos, a maioria secular, não têm ligação direta – pelo menos no Egito – com a Irmandade Muçulmana e realmente batalham por uma democracia laica. Mas isso (a frustração dessa expectativa) diz mais sobre nós mesmos, do Ocidente, do que sobre a realidade concreta.

Isso porque a democracia no Oriente Médio não passava de uma ideia ocidental de democracia?

A democracia é tida como um conceito universal. Mas a História está nos dizendo que talvez não seja. A democracia é boa para nós, mas será boa para eles? Ou seja, que tipo de sociedade eles querem construir? É o Ocidente que tem de impor esses conceitos todos, essas teorias? Quando digo Ocidente, refiro-me às grandes potências, sobretudo países europeus e Estados Unidos.

O apoio das potências ocidentais à democracia no Oriente tem, obviamente, interesses geopolíticos e econômicos por trás, além da busca por uma maior segurança diante do terrorismo, não é isso?

Com certeza. O que menos estão interessados é na defesa de direitos humanos, mesmo porque apoiam e são bem próximos da Arábia Saudita, país que comete as piores violações e reprime a mulher da forma mais sistemática e violenta. E a gente vê poucas denúncias em relação à Arábia Saudita, porque é uma aliada. As potências ocidentais usam isso (o discurso democrático) como pretexto para invadir, pressionar, levar adiante sanções econômicas, para tentar impor seus valores e manter um controle. O medo do Ocidente em relação ao Oriente é o medo do desconhecido. O que é a Irmandade Muçulmana? O que estão buscando? Isso é muito desconfortável para o Ocidente.

Então, essa reviravolta que houve fala mais sobre nós mesmos do que sobre aquela realidade, porque as condições subjetivas já estavam latentes na sociedade, impulsionadas por uma minoria culta, urbana e secular que ocupou o espaço das mídias sociais. O Facebook e o Twitter não fazem revolução, e, sim, o povo em massa nas ruas. Mas podem, sim, detectar essa tendência que já estava sendo construída e, então, impulsioná-la.

O (cientista político e historiador) José Murilo de Carvalho diz, em um de seus livros, que, se uma ideia não encontra um substrato na sociedade, cai no vazio e no ridículo. Ele cita, de alguma forma, (Karl) Marx. Todos esses países alvo das revoltas têm regimes laicos, autoritários, extremamente violentos, praticantes de tortura e muito corruptos, que detinham nas suas próprias mãos a economia do País. Você via isso no Egito com a família do Mubarak; e ainda com a família Assad na Síria, com o cunhado de Bashar (irmão de sua esposa, Alma) detendo grande parte do poderio econômico do país.

Claro que esses jovens estão muito frustrados, voltaram às praças, aos protestos, porque não querem um recuo. Estavam descontentes com aqueles regimes e não vão colocar outro dos mesmos moldes no lugar. Os contatos que tenho, sobretudo no Egito, mostram que a Irmandade Muçulmana, quando viu que aquilo era inevitável, acabou se aliando, o que foi fundamental para o resultado da revolução.

Mas a Irmandade apoiou usando essa força jovem para seus próprios interesses.

Com certeza, por isso esses jovens se sentem frustrados diante de uma revolução sequestrada – um pouco a exemplo da Revolução no Irã, em 1979, que foi feita por todos os setores da sociedade, os mujahedin, trotskistas, liberais, as lideranças sindicais.

Para depois o Irã cair na mão dos aiatolás…

Foram massacrados, dizimados pelo governo que se firmou no poder e se radicalizou. E nesse meio-tempo teve a invasão do Irã pelo Iraque.

Dá para fazer um paralelo entre a Revolução Iraniana e o que está acontecendo agora?

De alguma forma, sim, mas a História não vai repetir-se, muito menos da mesma maneira. Desde 1979, passaram-se décadas e o mundo mudou muito rápido. Por exemplo, você não consegue mais esconder nada. Nem no Irã se consegue impedir o acesso à internet, há sempre maneiras de burlar.

Eu estive lá em novembro, e não conseguia entrar do Face, a rede caía toda hora, eu buscava o site do meu banco para pagar uma conta e aparecia uma página, em farsi, com indicações de sites religiosos para visitar. Agora, é claro que, depois uma semana, os seus amigos te dão os quebra-filtros e você entra no Face ou em qualquer site. Então, é muito difícil se repetir o que se deu no Irã. Lá, eles dizimaram todas as esquerdas, todas as lideranças. Hoje a Irmandade não faria isso no Egito, não teria condições.

Mas há uma islamização quase que voluntária da sociedade. Eu estive no Egito uns anos atrás e as mulheres andavam de minissaia, roupas normais. Hoje, 99% das mulheres, embora não seja obrigatório, saem às ruas de cabeça coberta, com roupas compridas. Sob um calor de 40 graus, você se sente até constrangida de usar vestido curto de alcinha. Há essa tendência rumo ao islamismo e o descontentamento de uma parte menor da população lutando por uma sociedade secular, com direitos iguais entre homens e mulheres. Estão vendo um retrocesso e lutando para que isso não se torne lei, não vire uma sharia, não entre na Constituição do país, como é no Irã.

Qual a razão dessa islamização?

O Egito é extremamente pobre, miserável, sem infraestrutura, está desmantelado, falido, à beira do caos. Quando eu estive lá antes da eleição do Mohamed Mursi, já se via a ausência de Estado. Nessas horas, é muito fácil para um governo religioso manipular a grande massa da população. Isso explica boa parte dessa guinada. Por outro lado, precisam de investimento estrangeiro. Desesperadamente. Sem investimento estrangeiro e sem atrair turistas, eles não conseguem começar a se levantar.

De onde poderia vir esse dinheiro? Das potências ocidentais ou de aliados no Oriente?

O Egito estava com uma conexão boa com o Irã, mas mesmo o Irã se encontra em um estado muito frágil e crítico. Também estive lá, e dá para sentir o estrago das sanções econômicas que estão afetando a população civil. Não sei se isso ajudaria a mudar alguma coisa – no caso do Irã não seria derrubar o governo, mas, sim, mudar o sistema de forma radical.

O sistema político do Irã é sui generis. É um sistema religioso, tem o conselho dos guardiões, tem o aiatolá que comanda o país, embora haja o presidente. Com as sanções, não existe reposição de peças de avião, então é um perigo pegar um voo das companhias internas, faltam vários medicamentos e os preços de todas as mercadorias aumentaram muito. Sanção é o seguinte: é claro que se vende para o país, mas a um preço muito mais alto. Essa é a hipocrisia da sanção: não se deixa de vender, e quem paga o pato é a população civil.

Estive conversando com o ministro da Economia do Irã e ele falou que queria ampliar as relações comerciais com o Brasil, que exporta muita carne para lá, especialmente a carne halal, produzida de acordo com os princípios islâmicos. O próprio embaixador brasileiro disse que o número de bancos que aceitam fazer transações com o Irã tem diminuído cada vez mais.

Voltando à questão da democracia, o que o Oriente deveria buscar é uma democracia a seu modo, e não como o Ocidente a concebe?

O nome talvez nem seja democracia, mas um sistema que respeite os direitos humanos, que de alguma forma dê voz às mulheres. No Egito, tem a questão das mutilações genitais, que não é uma tradição islâmica, e, sim, tribal, mas acabou permanecendo e afeta grande parte da população feminina – e que o regime do Mubarak estava tentando erradicar, inclusive por meio da esposa dele. Essa mutilação teria de ser proibida na Constituição, mas, com essa questão religiosa, fica mais complicado. E o que é a religião? Um sistema de conduta, de moral, de valores.

Os livros sagrados, no fundo, são um grande compêndio de conduta moral, sexual, para tentar ordenar e disciplinar o povo. Como no caso do Alcorão, que tentou unificar as tribos árabes bárbaras, incivilizadas e inimigas entre si para dar a elas um norte, para permitir o convívio, o entendimento e o enriquecimento como sociedade.

Quando as normas são de um Estado que não é laico, e, sim, religioso, é mais complicado, porque você tem aquele lado intangível, inefável, que é Deus. Deus mandou. Você chega no limite da argumentação, o que favorece a manipulação, porque em nome de Deus você faz qualquer coisa, de acordo com seus objetivos políticos e econômicos. É mais complexo o desenvolvimento de uma democracia dentro desse caldo de cultura religioso. O momento de crise, de desespero, é quando a religião encontra solo fértil para deitar raízes.

O ideal seria haver um Estado laico, separado da religião, como aqui? Por outro lado não cabe a nós dizer o que eles deveriam fazer…

O conhecimento, a educação e a informação seriam os antídotos, não contra a religião, mas contra imposições avessas aos desejos da maioria da população. É extremamente complexo querermos julgá-los com os nossos valores, mas também não temos outra maneira de fazer isso. De que maneira podemos olhar sem ser através dos nossos olhos?

A melhor coisa seria o Ocidente exercer a menor ingerência possível sobre o Oriente? Por outro lado, no caso de crimes contra a humanidade, o Ocidente não estaria sendo omisso?

É um pouco como na Bósnia, onde houve um verdadeiro genocídio, e o dito Ocidente demorou para interferir, para parar aquela sangria. É o caso da Síria hoje: é legítimo enviar armas? Na minha opinião, seria legítimo enviar brigadas internacionais como aconteceu na Guerra Civil Espanhola. Organizações sindicais, estudantes, trabalhadores, criariam exércitos populares para dar o apoio.

Mas o apoio a quem? Aos rebeldes? Entre os rebeldes tem a Irmandade Muçulmana, a Al-Qaeda.

Pois é, é complicado. Existe, claro, uma liderança que batalha por uma democracia laica, mas neste momento não é majoritária na Síria, porque os rebeldes estão bastante fragmentados. E o Hezbollah apoia o Bashar Assad. Eu mandaria apoio para gente de confiança que mantém os ideais originais da revolução.

Tecnicamente, a Primavera Árabe acabou. A Wikipedia data o começo em 2010 e o fim em 2012. Como podemos historicamente classificar e entender o que se vive hoje?

As mídias sociais deram a ilusão de que os processos são muito rápidos, porque se deram assim, quase do dia pra noite. Começou com a troca de informações no Facebook conclamando as pessoas, acreditando-se que 3 mil iriam para as ruas. Mas foram 500 mil, 1 milhão, 2 milhões reunidos na Praça Tahir. Isso dá a impressão de que as revoluções, de que esses processos todos se dão em um prazo muito curto e a gente quer respostas também rápidas.

Perguntaram uma vez ao Mao Tsé-tung qual tinha sido o impacto da Revolução Francesa na sociedade e no mundo, e ele respondeu que ainda era muito cedo para dizer. Os jovens que depuseram Mubarak e querem usufruir de uma sociedade mais justa, com empregos, eles têm pressa. Só que a História é de longo prazo, ela tem o seu tempo, que não é nosso tempo, que muitas vezes não é o tempo de uma vida. Apesar dessa impressão causada pelas mídias sociais.

É relativamente fácil demolir uma estrutura, mas, para erguer outra, é muito mais lento e complicado e começa-se a lidar com uma “democracia” que não existia antes, com várias vozes querendo discutir e postular. É um aprendizado longo começar a dialogar. Antes, não existia diálogo, existia voto. Em Paris, eu encontrei uma tunisiana que falou: “Não aguento mais, agora lá (na Tunísia) todo mundo tem opinião, todo mundo tem direitos, todo mundo sabe tudo, o vizinho quer uma coisa, o outro quer outra”. Eu respondi a ela: “Sinto muito dizer, mas isso é democracia…” (risos) Depois de tanto tempo calado, há uma euforia, tudo o que estava engasgado as pessoas querem pôr pra fora. Então, tem essa perturbação.

Eu não diria que agora é o Outono ou o Inverno Árabe. A Primavera foi aquela eclosão, como a primavera é, a vida explode, houve essa ânsia por liberdade e mudança, com conquistas muito importantes, a gente não pode desprezar isso porque simplesmente a Primavera Árabe acabou. A Primavera como tal – aquele primeiro momento – fechou um ciclo. Só que outros ciclos se abrem. Ela tem uma importância imensa, derrubou uma ditadura sanguinária como a do Mubarak, derrubou o ditador na Tunísia; na Síria estão lutando, a Síria está sangrando em um processo muito doloroso.

Acabou, sim, aquele primeiro ciclo, como a primavera termina. Não quer dizer que o processo terminou e nada mais vai acontecer. Agora são buscas por acomodações possíveis das forças internas, em disputa pelo poder vis-à-vis à pressão dos países externos, de cujos investimentos eles precisam desesperadamente.

Essa necessidade de recursos pode ditar o caminho daqui para a frente?

Com certeza, não tanto no Irã, por enquanto, pois é um país que ainda tem reservas. Mas outros países árabes, com o Egito à frente, vão precisar acatar algumas imposições estrangeiras – ao mesmo tempo que os investimentos são parcos, por conta da crise econômica global.

Com a Primavera, podemos dizer que se acirrou a dualidade islamismo “americanofóbico” e Ocidente, uma que vez as potências ocidentais apoiam a luta pela chamada democracia?

Não. A Primavera acabou dando maior visibilidade ao que já existia. Até no Irã a população tem uma relação de amor e ódio em relação aos Estados Unidos, porque admiram algumas conquistas. O próprio governo iraniano é ciente de que neste mundo globalizado não dá para viver por muito tempo ilhado. E as potências ocidentais têm de reconhecer que não podem mais ter aquele papel de imposição e arrogância que tinham no passado, mesmo porque o capitalismo está passando por uma crise profunda e elas não têm mais o poderio. Veja a Europa, está esfacelada. Este é um momento muito rico, porque essa profunda crise do capitalismo de um lado e de outro os desdobramentos do que foi a Primavera Árabe são oportunidades de renovar isso tudo, de achar novas maneiras de se relacionar econômica e geopoliticamente.

O que a motivou a se aprofundar no estudo do Oriente Médio?

Não sou uma especialista, mas venho estudando a questão. Sempre achei que o papel do intelectual, do escritor, é construir pontes. E quando tive os primeiros contatos com esse mundo do Oriente, ao ser convidada para um festival de cinema em Teerã, fiquei encantada. Porque vi que era completamente diferente do que eu ouvia falar, daqueles estereótipos, preconceitos. Vi pessoas muito acolhedoras, simpáticas, querendo fazer contatos. E entendo que as pontes que são mais frágeis são aquelas entre o dito Ocidente e o Oriente. Porque hoje você não entende o mundo sem tentar compreender o que se passa nesse Oriente Médio e no Irã.

Essa tatuagem que a senhora tem no pulso significa o quê?

Está escrito ashk. Significa “paixão”, em farsi. Em árabe, usam a mesma palavra.

Em Orientalismo, Edward Said demonstrou como a ideia de Oriente é uma construção do Ocidente, feita à sua imagem, criando estereótipos conforme seus próprios interesses políticos, de dominação e ideia de superioridade. Mas, ao mostrar o que o Oriente não é, pergunto se Said chegou a dizer o que aquela região é. Na sua visão, o que é, afinal, essa região que chamamos de Oriente?

Você não consegue definir o Oriente sem cair nessa construção orientalista. É um pouco aquela questão: o corpo está em repouso ou em movimento a depender do referencial. E o referencial é sempre eurocêntrico. Primeiro, quem sou eu para definir o Oriente? É impossível. Segundo, se for definir, vou fazê-lo de acordo com os meus valores e tradições culturais, então estarei, no fundo, subscrevendo a tese do Said.

O próprio nome Oriente foi criado em oposição ao Ocidente. Você dá um nome para uma região e ressalta as características que são mais úteis para poder manipulá-la, como o exotismo, a barbárie. Isso vai se opor a uma civilização protestante, regrada, bem-sucedida. Nem é preconceituoso: acho que não se sustenta. Quem disse que aquela coisa do bazar, de as pessoas barganharem, gritarem, não seja uma maneira mais efetiva e afetiva de comércio? Em contra- posição a um supermercado em que tudo já está com preço e você não pode conversar com ninguém. Não dá pra chegar no caixa de supermercado e barganhar, perguntar o quanto se quer por isso, e transformar a compra em uma relação mais pessoal.

Até para entender a origem, de onde veio aquilo, como foi produzido.
Exatamente. As lojas, os shopping centers tiram toda a atmosfera e as cores das ruas, e criam um ambiente artificial, com ar condicionado, sem a luz do dia, algo voltado totalmente para o consumo. Acho perverso. E isso é entendido como mais civilizado, mais asséptico, mais higiênico. O Ocidente gaba-se dessa higienização, mas esquece que está perdendo vários outros aspectos mais ricos. E por outro lado a sociedade islâmica é extremamente limpa, você precisa fazer a ablução, ou seja, lavar-se para entrar na mesquita.

Então, o Oriente não é para ser definido. É como o mapa-múndi invertido, com o Hemisfério Sul na parte de cima, é preciso mudar os referenciais, é um pouco a questão da proa e praia. A gente tem a visão da proa, vendo os índios na praia, mas e qual é a visão dos índios vendo os brancos na proa?

A resposta, então, seria termos uma visão mais multicêntrica, com vários pontos de vista?

Isso, como os rizomas da rede em que a gente vive hoje, muito mais democrática e interligada. O Oriente está ligado ao Ocidente e vice-versa, mesmo porque, para o Ocidente se chamar assim, ele precisa do Oriente, do contraponto. Por isso falo do “Ocidente”, entre aspas, pois também é uma criação. Primeiro você precisa se autodenominar para, depois, contrapor-se ao outro, o desconhecido do qual você tem medo e quer encapsular dentro de um aparato de normas. Ao empacotá-lo, ele se torna reconhecível e, portanto, menos amedrontador. Mas aí tem vários erros, pois dar rótulo não significa que aquilo vai se transformar no que você nomeou. E esses países todos são muito diversos entre si. Dizer “Oriente Médio” é muito empobrecedor, pois os países são muito diferentes entre si, com histórias diversas, veja, por exemplo, as diferenças entre Irã e Dubai.

O temor está muito presente hoje em relação a essa radicalização do islamismo. O dito Ocidente está apreensivo, porque apoiou (as revoltas) quando viu que ditadores confiáveis iam cair de qualquer jeito. Ficava chato não apoiar a Praça Tahir. Mas aí emergem forças da sociedade que essas potências não estavam predizendo. Há um dinamismo muito grande ali, que é imprevisível.

A senhora admira a religião islâmica?

O Alcorão em si é um livro muito mais moderno e que confere muito mais direitos às mulheres. É um dos únicos livros sagrados que fala do direito ao sexo, ao desejo, ao prazer sexual, inclusive das mulheres. Fala do direito da mulher à propriedade e a cargos de mando. Ele é bem mais arejado e generoso que os outros livros religiosos.

Como a Bíblia?

Sim, até porque é bem mais recente, é de 600 d.C. E foi criado de forma mais específica, dizem que Maomé foi escrevendo o que o anjo Gabriel ia ditando, e foi pensado de forma muito mais concreta, com o intuito de dar ordenamento àquela Arábia tribal, sem rumo, de tribos que guerreavam entre si.

O terrorismo, o radicalismo e a perseguição às mulheres, no entanto, são fatos bem palpáveis no mundo islâmico. O que acontece no caminho entre os princípios originais da religião e a sua prática?

Existem vários livros escritos que vão interpretando o Alcorão. Fala-se muito do apedrejamento, mas, da maneira como está colocado originalmente no Alcorão, é algo muito mais para prevenir do que para punir. Para aplicar essa lei, é preciso de pelo menos três testemunhas que não tenham nenhum parentesco com os envolvidos e tenham presenciado a cena do adultério. Se, na nossa sociedade permissiva atual no Ocidente, o sexo é algo que se faz entre quatro paredes, imagina em uma sociedade mais vigiada. Então, é muito difícil comprovar o adultério segundo o Alcorão. Aplicar uma pena de apedrejamento, portanto, é praticamente impossível.

Agora, há todas as interpretações e manipulações. E voltando àquela história: com a crise, a pobreza, o desespero, as pessoas ficam mais suscetíveis a essas manipulações. Se hoje você aplicasse os preceitos do Velho Testamento da Bíblia, seria a pior das idades das trevas possível.

A gente vê pela reafirmação do novo papa contra o uso de anti-concepcional e camisinha…

Na Igreja Católica, o sexo é só para procriar. Isso não existe no Alcorão. No Alcorão, se o homem não satisfizer a mulher sexualmente, ela tem o direito de pedir o divórcio. Isso é extremamente moderno, se você pensar na data em que foi escrito. Quando li algumas passagens, fiquei surpresa. Por isso que busco, dentro das minhas limitadas possibilidades, mais por intuição e vontade, construir essas pequenas pontes. Se as pessoas, em suas áreas, forem construindo essas pontes, o Oriente vai deixando de ser a ameaça do desconhecido.


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